notícias do quintal(1)

A canafístula é a rainha da frente, o abacateiro é o rei dos fundos.
As camélias abrem no coração do inverno, um pouco depois vem a florada do ipê.
Do lado da janela do quarto tem dois pessegueiros em fim de carreira. Mais para trás, uma pitangueira, uma bergamoteira, duas laranjeiras, um pézinho novo de romã, um pézinho de limão lutando pela vida, uma verbena, uma vence demanda, as espadas, as tumbérgias, as ondinhas, as orquídeas, o guaco, a ora pro nobis, a lavanda, os peixinhos, o alecrim, e uns tantos outros viventes que não conheço de nome.

Muitas das plantas que crescem nesse pedacinho de terra chegaram ao longo do tempo com o vento e com o cocô dos passarinhos, algumas foi a gente mesmo que plantou, e um outro tanto delas já estavam aqui quando chegamos, vinte e dois anos atrás.
A gente vai deixando tudo vir porque o quintal é um ente autônomo, tem mira selvagem.

Eu acho que o mais bonito do jardim é que, nessa comunidade que somos, todo dia tem acontecimento, tem diferença. Brotos novos, fruta comida, a casa das jataí crescendo mais um mini milimetro quase invisível, a transformação lenta de cada flor em fruta, as passagens sutis do verde ao maduro, do maduro ao podre, as plantinhas espontâneas que surgem da noite pro dia, o ataque relâmpago das formigas devorando uma planta inteira em meia dúzia de horas, a artesania cósmica das heras, teias e casulos de bicho. Eu gosto da intimidade de família que fui criando com cada canto vivo daqui, e de andar entre eles todos os dias só pra olhar, para saber como estão as coisas. Não faço muito mais do que aguar a terra quando a chuva está pouca, trazer húmus da composteira quando as folhas estão tristes. O que mais faço é tomar o quintal devagar, com os olhos, com a pele, o nariz, os ouvidos.

Tem épocas específicas do ano que eu me dedico às podas, porque mesmo um jardim selvagem às vezes precisa desse cuidado. Tem vezes que é para manter a saúde delas, outras vezes para manter a saúde do telhado de casa e das nossas cabeças.
Quando o primeiro pessegueiro morreu pela imperícia de uma poda feita fora de época por um jardineiro inexperiente, fiquei arrasada. Então cuido muito o tempo de podar cada coisa.
Com o tempo de prática, descobri que tem uma planta que não se ressente com o podão em época nenhuma do ano, muito pelo contrário. Uma das espécies de jasmim aqui do quintal cresce tão rápido que quase dá pra ver a olho nu. É uma planta tão vigorosa que precisa ser domada para não engolir a casa. Com o tempo, me tornei imensamente grata pelo trabalho incessante que ela me dá. A cada ano eu aprecio mais nossa conversa. Conversa de pensamento calado e observante, conversa de manhãs e tardes inteiras, só eu e ele.
O jasmim foi o testemunho mais constante do meu silêncio ao longo do primeiro ano de luto depois que o corpo do meu pai adoeceu e morreu. Passei horas e horas montada na escada, ferramentas amarradas na cintura, olho cravado na lâmina, cavando o vazio.
Enquanto abria espaços para o sol entrar, só o ritmo do alicate e dos galhos caindo. Só o prazer da lida, da respiração, do suor, só o cansaço de recolher tudo depois.

Eu sempre termino uma sessão de poda mais feliz.
E foi assim que o jasmim se tornou a doula de outros lutos. Me socorreu em cada morte de cada amigo querido ao longo dos últimos dez anos.
E durante a pandemia me segurou os olhos no rosto escrevendo cartas para o céu com um alfabeto todo feito por ele. Sem entender essa caligrafia, confiei no corpo das suas letras como quem se entrega a uma prece.

Mas isso é assunto para outro texto, que eu pensava escrever bem depois desse.

Quando eu comecei a escrever essa anotação, era para contar sobre a decisão difícil de cortar uma árvore inteira aqui do quintal. Uma decisão que tomei no final do ano passado.
E para falar sobre a decisão ainda mais difícil de fechar um ciclo longo de trabalho em uma instituição pública da minha cidade em que atuei de forma intensamente engajada durante mais de vinte anos .

Quando eu comecei a escrever esse texto eu queria contar sobre o que fui fazendo e notando até perceber que não tinha outra opção além de cortar a árvore(ela estava bem doente e poderia contaminar as outras), que eu não tinha outra opção além de encarar de frente que eu não mais voltaria a trabalhar como servidora pública.

Quando eu comecei a escrever essa notícia do quintal, queria contar sobre o que tem acontecido desde que consolidei essas duas decisões. Em outubro de 2023, cortamos uma das laranjeiras, e em março de 2024 pedi exoneração.

Tem muitos fios ligando estes dois cortes,hoje eu percebo, E eu queria falar sobre isso.

Mas nessa semana em que escrevo, o céu está cinza de fuligem das queimadas. Estamos com a garganta e os olhos secos e ardendo, pulmões enfumaçados, coração apertado de desalento. As imagens de satélite, as notícias dos nossos quintais brasis em brasa, o que vemos pela janela, é um horizonte fechado e apocalíptico, um céu imensamente triste.

E nenhuma outra coisa é mais importante do que sentir essa tristeza.
E nenhuma outra coisa é mais importante do que percebermos a extensão dessa doença: a desconexão do pulso da vida , o materialismo ganancioso, o modelo capitalista , individualista de viver e produzir, que não entende que somos todos interconectados, que somos todos parte dessa teia delicada. Esse é um modelo baseado no abuso dos corpos, na exploração abusiva e violenta da terra. E para que algo possa mudar, precisamos tanto da nossa tristeza quanto da nossa indignação.

Quando eu comecei a escrever essa notícia, eu queria contar da surpresa de ver brotar mini folhas tenras do verde mais brilhante e solar diretamente do tronco caloso e velho da árvore que sobreviveu. Essa brotação delicada e decidida veio logo depois do corte, poucos dias depois.

Quando revejo as primeiras imagens que fiz desse acontecimento quero ter a esperança de que talvez ainda tenhamos tempo de reverter alguma coisa. Quanto mais fumaça precisamos para despertar ?

O certo é que entre os espasmos do fim de um mundo e as contrações do parto de um outro possível, a vida sempre pede passagem.

A gente só precisa parar de atrapalhar.

Porto Alegre, 12 de setembro de 2024

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